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Tardiamente, Charlie


Existem viagens e VIAGENS. A VIAGEM da vida estava planejada pra janeiro de 2015. Planejada, contabilizada e ansiosamente aguardada. Superados o medo de avião e o pouco dinheiro, embarcamos, eu e meu caçula para a Europa. Destino certo pra matar a saudades do filho que atravessou o Atlântico pra tentar a vida em terras inglesas e conhecer um pouco do velho continente.

O encantamento foi imediato. Tudo de lá cabia nas lembranças que eu ainda não tinha. Tudo parecia ser um velho conhecido meu. Deslumbrada, conheci as ruas, os mercados, os parques. Um dos roteiros era conhecer a França. De barco e depois trem. Cherbourg, no litoral por um dia e seguido por Paris, um sonho antigo.

Chegamos a Cherbourg numa tarde fria. Passeios, os primeiros sabores franceses e hotel para descansarmos e nos prepararmos para a viagem do dia seguinte. Ligamos a TV. Um ataque terrorista em Paris. Um jornal, Charlie Hebdo, havia sido atacado. Doze mortos e a França chocada. Deu um frio no estômago. Iríamos pra Paris e de trem. Tentei tranquilizar meus filhos, afinal após um atentado é muito difícil acontecer outro. Eles concordaram. A segurança é redobrada, as pessoas ficam mais atentas.

Paris estava gelada e chuvosa no dia de nossa chegada. Parecia estar chorando seus mortos. Minha lógica frágil sobre atentados caiu por terra. Nesse mesmo dia uma policial foi morta e no dia seguinte, próximo ao lugar no qual almoçávamos, um novo atentado, dessa vez a um supermercado judaico, resultando em cinco mortes. Se a história se constrói diariamente, estávamos vivendo um fato histórico sangrento. Manifestações se seguiram. Ataques a estabelecimentos de imigrantes muçulmanos, palavras de revolta nos muros e a indignação marcada no rosto dos franceses. Angustiados, do outro lado do mar, a família e amigos pediam notícias e recomendavam cuidados. E logo o mundo era Charlie. Je suis Charlie. Nas redes sociais havia os que apoiavam e os que não eram Charlie. Inúmeros motivos para não apoiar o humor controverso do jornal. No entanto o que víamos por lá não era um apoio incondicional ao jornal e sim à liberdade. Cartazes, faixas, indignação de um povo que defende a liberdade de expressão acima de tudo. Nada justificava, nem mesmo as charges ofensivas do jornal, que pessoas estivessem sendo mortas por conta disso. Por lá não vi questionamentos ou qualquer falta de apoio ao Charlie Hebdo. Era a liberdade que estava sendo defendida.

Nossos roteiros foram os mesmos, mas havia um certo receio. O alerta vermelho para atentados estava fixado em todos os pontos turísticos. Cartazes alertavam para comunicar a polícia em caso de qualquer suspeita. O exército e suas armas estavam por todos os lugares, e como diria meu filho, nada mais inseguro do que ver tantos militares nas ruas. Quando partimos tínhamos certeza de que tinha sido uma viagem inesquecível em todos os sentidos.

Retornamos ao Brasil e as perguntas sobre os dias em Paris foram muitas. Fotos, sensações, sentimentos foram compartilhados. E a velha máxima era sempre relembrada, “ainda bem que aqui não temos atentados”, “pelo menos aqui não tem terroristas”. Alguns dias após o meu retorno, voltando à rotina, os noticiários anunciavam a morte de um estudante, assassinado com um tiro na nuca na frente de uma multidão de colegas. Acidentes em estradas matavam dezenas. Assaltos frequentes. A bicicleta do filho de uma amiga roubada com uma arma apontada para ele, a terceira bicicleta roubada nos últimos três anos. Colegas mudando trajetos por terem se sentido ameaçadas. Mães sendo sequestradas quando deixavam seus filhos nas escolas. Amigos sendo vítimas de sequestro relâmpago. A moto de outro amigo sendo roubada em plena marginal. Aqui sim, no meu país, havia o medo. O medo de sofrer com a violência já tão cotidiana para nós, o medo dos filhos não voltarem para casa, o medo de bala perdida, assalto à mão armada, estupro, sequestro. Somos vítimas do medo enraizado no nosso cotidiano, tão próximo que até nem percebemos como ele nos ameaça diariamente. Agora sim tenho certeza, o terror está aqui.

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